Os assuntos que motivam este texto
mereceriam, por si só, tratamento autónomo em crónicas de maior fôlego. Por
certo, outro artista das palavras saberia gizar um título prestimoso englobando
os três temas e reflectindo sobre cada um, numa prosa suave em que o leitor nem
sentiria a abrupta mudança de temática. Ao invés, sem esse savoir faire, deixo-vos esta tripartida reflexão sobre uma animação
teatral, um livro e um edifício.
Neste próximo fim-de-semana, dia
14, as Cortes Regressam a Santarém. Com texto de José Manuel Rodrigues e
encenação de Paulo Cruz, a empresa municipal Viver Santarém entendeu produzir
um espectáculo teatral baseado nas últimas cortes que tiveram lugar em
Santarém, no ano remoto de 1482. Na verdade, entre os séculos XIII e XV, a
então vila escalabitana, acolheu essa “reunião magna” do reino, pelo menos por
treze vezes. Depois do reinado de D. João II, muito por via da morte trágica do
Infante D. Afonso, na Ribeira, junto ao Tejo, os caminhos da família real
afastaram-se desta vila e, não raras vezes, foram se deter em Almeirim. Estas
cortes de 1482, para além de serem as últimas realizadas em Santarém,
detiveram-se quase exclusivamente na discussão sobre a constituição de
empréstimo público para pagar 50 milhões de reais brancos de dívida deixada por
D. Afonso V. Mutatis mutandis, ontem
como hoje a “dívida pública” estava no centro do debate. Este “regresso das
Cortes”, com uma tarde e noite de animação histórica, parece-nos bastante
oportuno. Esperemos que seja a primeira de muitas iniciativas do género. À
história de Santarém não faltarão episódios onde buscar inspiração.
Fruto
de profunda inspiração poética terá sido O
Relógio, novo livro de Samuel Pimenta, com a chancela da “Livros de Ontem”.
Trata-se de um longo poema, vencedor do Prémio Jovens Criadores 2012, com o
qual, segundo informações que recolhemos, o autor já tinha brindado o público
escalabitano, em leitura emotiva, no III Encontro de Poetas Locais. O livro, de
cuidado aspecto estético, revela-nos um “poeta em construção” na defesa da
“multiplicidade do ser”. Essa recusa premente, quase sempre violenta da
banalidade dos “dias iguais”, do conformismo das “horas redondas” apregoadas
por “pessoas redondas”, está presente ao longo das páginas deste Relógio, libelo acusatório contra uma
sociedade cinzenta. Como não poderia deixar de ser, são múltiplas as
influências que inferimos na leitura do texto. A utilização de uma máquina
enquanto objecto motivador do poema pode fazer lembrar Álvaro de Campos, porém
na nossa humilde qualidade de leitores e não de literatos, vemos com maior
facilidade aproximações a Alexandre O’Neil ou a António Gedeão. De qualquer
modo, o poema vale por si, sendo sem dúvida um excelente afirmar da voz própria
de Samuel Pimenta nos novos caminhos das letras portuguesas. A apresentação, a
cargo de Maria João Cantinho e com um momento musical de Isaac Pimenta, terá
lugar às 14h na Livraria Ferin, em Lisboa.
Notas finais — possivelmente para
reflectir na viagem de entre Lisboa, após a apresentação livro de O Relógio, e Santarém, onde chegará a tempo de assistir ao “regresso das
Cortes Medievais” — sobre a decisão judicial relativa ao Teatro Rosa
Damasceno. Segundo nos foi dado a entender ficou o proprietário obrigado a
zelar pela integridade física do espaço, não podendo, de modo algum, adulterar
a matriz arquitectónica deste. Evidentemente, que saudamos esta decisão, na
linha do que temos defendido para aquele espaço. De facto, o potencial
cultural, patrimonial e turístico do Teatro Rosa Damasceno é enorme. Assim o
atestam, por exemplo, os múltiplos trabalhos académicos aos quais temos dado
apoio, como recentemente ao projecto de design da estudante Cynthia Leal.
Porém, toda e qualquer solução para edifício deve envolver de forma construtiva
a autarquia, a comunidade e o proprietário. Só através de um “consenso social”
do que queremos para o Teatro Rosa Damasceno, saberemos construir um novo
futuro sem devorar as raízes.
©José
Raimundo Noras