sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Crónica tripartida: “regresso das Cortes”, a leitura de “O Relógio” e o futuro de um cine-teatro


Os assuntos que motivam este texto mereceriam, por si só, tratamento autónomo em crónicas de maior fôlego. Por certo, outro artista das palavras saberia gizar um título prestimoso englobando os três temas e reflectindo sobre cada um, numa prosa suave em que o leitor nem sentiria a abrupta mudança de temática. Ao invés, sem esse savoir faire, deixo-vos esta tripartida reflexão sobre uma animação teatral, um livro e um edifício.

        Neste próximo fim-de-semana, dia 14, as Cortes Regressam a Santarém. Com texto de José Manuel Rodrigues e encenação de Paulo Cruz, a empresa municipal Viver Santarém entendeu produzir um espectáculo teatral baseado nas últimas cortes que tiveram lugar em Santarém, no ano remoto de 1482. Na verdade, entre os séculos XIII e XV, a então vila escalabitana, acolheu essa “reunião magna” do reino, pelo menos por treze vezes. Depois do reinado de D. João II, muito por via da morte trágica do Infante D. Afonso, na Ribeira, junto ao Tejo, os caminhos da família real afastaram-se desta vila e, não raras vezes, foram se deter em Almeirim. Estas cortes de 1482, para além de serem as últimas realizadas em Santarém, detiveram-se quase exclusivamente na discussão sobre a constituição de empréstimo público para pagar 50 milhões de reais brancos de dívida deixada por D. Afonso V. Mutatis mutandis, ontem como hoje a “dívida pública” estava no centro do debate. Este “regresso das Cortes”, com uma tarde e noite de animação histórica, parece-nos bastante oportuno. Esperemos que seja a primeira de muitas iniciativas do género. À história de Santarém não faltarão episódios onde buscar inspiração.

           Fruto de profunda inspiração poética terá sido O Relógio, novo livro de Samuel Pimenta, com a chancela da “Livros de Ontem”. Trata-se de um longo poema, vencedor do Prémio Jovens Criadores 2012, com o qual, segundo informações que recolhemos, o autor já tinha brindado o público escalabitano, em leitura emotiva, no III Encontro de Poetas Locais. O livro, de cuidado aspecto estético, revela-nos um “poeta em construção” na defesa da “multiplicidade do ser”. Essa recusa premente, quase sempre violenta da banalidade dos “dias iguais”, do conformismo das “horas redondas” apregoadas por “pessoas redondas”, está presente ao longo das páginas deste Relógio, libelo acusatório contra uma sociedade cinzenta. Como não poderia deixar de ser, são múltiplas as influências que inferimos na leitura do texto. A utilização de uma máquina enquanto objecto motivador do poema pode fazer lembrar Álvaro de Campos, porém na nossa humilde qualidade de leitores e não de literatos, vemos com maior facilidade aproximações a Alexandre O’Neil ou a António Gedeão. De qualquer modo, o poema vale por si, sendo sem dúvida um excelente afirmar da voz própria de Samuel Pimenta nos novos caminhos das letras portuguesas. A apresentação, a cargo de Maria João Cantinho e com um momento musical de Isaac Pimenta, terá lugar às 14h na Livraria Ferin, em Lisboa.
        Notas finais ­­­­­— possivelmente para reflectir na viagem de entre Lisboa, após a apresentação livro de O Relógio, e Santarém, onde chegará a tempo de assistir ao “regresso das Cortes Medievais” ­­— sobre a decisão judicial relativa ao Teatro Rosa Damasceno. Segundo nos foi dado a entender ficou o proprietário obrigado a zelar pela integridade física do espaço, não podendo, de modo algum, adulterar a matriz arquitectónica deste. Evidentemente, que saudamos esta decisão, na linha do que temos defendido para aquele espaço. De facto, o potencial cultural, patrimonial e turístico do Teatro Rosa Damasceno é enorme. Assim o atestam, por exemplo, os múltiplos trabalhos académicos aos quais temos dado apoio, como recentemente ao projecto de design da estudante Cynthia Leal. Porém, toda e qualquer solução para edifício deve envolver de forma construtiva a autarquia, a comunidade e o proprietário. Só através de um “consenso social” do que queremos para o Teatro Rosa Damasceno, saberemos construir um novo futuro sem devorar as raízes. 

©José Raimundo Noras 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A marca de Korrodi em Alcanede e em Santarém?

A cidade Santarém já é rica em importantes testemunhos arquitectónicos do século XX. Nomes como os de Cassiano Branco, de Rodrigues Lima, de Pedro Cid ou de Amílcar Pinto figuram entre os autores do património novecentista do nosso burgo. E nem valerá a pena referir o fantástico plano urbanização de João Aguiar, o qual só por si merecerá um estudo aturado, que não cabe em singela crónica. Porém, tem estado desconhecida do público e, até, da própria comunidade científica, uma hipotética "marca de Ernesto Korrodi" no concelho de Santarém.
Ernesto Korrodi nasceu na Suiça, em 1870. Radicou-se em Portugal a partir de 1899, onde desenvolveu uma carreira ligada, sobretudo, ao ensino artístico. Mais tarde, já como arquitecto esteve associado às correntes revivalistas da arquitectura nacional. Desenvolveu uma interpretação própria da “escola” de Viollet-le-Duc, defendendo, entre nós, a necessidade restauro e de salvaguarda do património monumental do país. Ligado profissional e sentimentalmente à cidade do rio Lis, ficou famoso o seu projecto de reabilitação para Castelo de Leira. Deixou obra espalhada pelo país, com um núcleo produção mais significativo, precisamente, em Leira. Contudo, terá o seu caminho artístico passado por Santarém?
De facto, apesar de não estar estudado, o inventário da obra deste arquitecto, incluso no livro Ernesto Korrodi (1889-1944): arquitectura, ensino e restauro do património (Lisboa, Estampa, 1997), de Lucília Verdelho da Costa, menciona um “Teatro em Santarém”. Trata-se de um conjunto de peças desenhadas com o título “Projecto de ampliação e de colocação de cortina de ferro para Teatro em Santarém”, sem data, e assinado por Ernesto e Camilo Korrodi (seu filho), hoje à guarda do Arquivo Distrital de Leiria (ADLRA).
 Terá tal projecto visto a luz do dia? Dos desenhos originais, apenas sobra um corte, uma planta e alguns desenhos de pormenor da cortina de ferro, onde se refere: “plateia: 53 lugares” e “balcão: 40 lugares”, dando a entender que seriam esses os lugares a aumentar. O pé direito do corte e o desenho clássico das colunas interiores fazem-nos pensar que o projecto se destinaria à "primeira sala" do Teatro Rosa Damasceno (o qual se chegou a chamar Teatro de Santarém). Porém, o número de lugares, mesmo considerando que seriam resultantes da ampliação, parece apontar outras hipóteses.
Nesta altura — o projecto deverá ter sido realizado entre anos 20 e os anos 40 do século XX, no máximo —, existiriam mais dois teatros a funcionar em Santarém. Só um estudo comparativo entre os desenhos que subsistem e os registos das salas, entretanto modificadas, dois actuais Teatros Taborda, Rosa Damasceno e Sá Bandeira, poderá esclarecer, definitivamente, esta questão. Contudo, mesmo que tenha sido executado, tal projecto já não passa de memória urbana, ainda que com interesse histórico, terá sido apenas “marca de água” deixada por Korrodi em Santarém
Mais consistente foi o projecto para Alcanede. Trata-se de um conjunto de desenhos intitulados: “Projecto de Jazigo para Cemitério de Alcanede, n.º 23”, também à guarda do ADLRA e integrados no Fundo de Ernesto e Camilo Korrodi. Ao contrário do projecto de ampliação para um teatro, estes alçados, cortes e estudos prévios para um jazigo não estão assinados. O jazigo destinou-se ao Padre João Gustavo Rebelo e Família, data de cerca de 1940 e hoje, sob forma pétrea, desafia o tempo com uma marca artística, no cemitério de Alcanede. Neste caso, existe parte do projecto e a obra edificada, apenas podem subsistir dúvidas da autoria pela ausência de assinatura nos desenhos. O inventário de Lucília da Costa não refere o jazigo alcanedense, mas faz menção de um “projecto de túmulo”, de 1940. Poderá ser alusão ao monumento funerário do Padre Gustavo Rebelo?


Jazigo de Padre Gustavo Rebelo e Família
Cemitério de Alcanede
Ernesto e Camilo Korrodi, c. 1940
Fotografias de José R. Noras

 Na nossa investigação em História da Arte, temos seguido uma máxima: “o monumento é documento de si próprio”. Se não bastassem as restantes evidências, os motivos decorativos das portas metálicas deste monumento funerário quase ostentam o nome do autor. O jazigo não terá monumentalidade do Mausoléu encomendado pelo Conde de Bunay, mas tem claras afinidades estéticas com essa e com outras obras funerárias de Korrodi.

 Ernesto e Camilo Korrodi passaram por Santarém. Por certo visitaram os teatros locais e para um deles conceberam um plano de ampliação. Contudo, foi em Alcanede que deixaram marca indelével, num modesto mas elegante Jazigo familiar. Do túmulo vê-se no horizonte a silhueta do Castelo de Alcanede, como se a morte continuasse a sorrir ao tempo e os homens buscassem nas pedras erguidas ilusões de eternidade. 

Novembro 2013
José Raimundo Noras


Castelo de Alcanede visto do Cemitério
Fotografia de José R. Noras

As vilas de Alcanede e de Pernes na escrita do tempo

Para além de diversos projetos, profissionais e académicos, encontramo-nos a redigir dois ensaios bibliográficos, de maior fôlego, sobre a documentação existente e sobre a produção escrita relativas às vilas de Alcanede e de Pernes. Não caberia em singela crónica, qualquer tentativa de história, por mais resumida que fosse, destas localidades, cujas origens remotas se perdem na “noite da história”. Pode-se entender este texto, como breve alusão ao assunto despida do aparato teórico desses ensaios, apelando em simultâneo para uma reflexão da importância da memória nos nossos presente e futuro coletivos.
Como por certo o leitor estará ciente, Pernes e Alcanede foram irmanadas na mesma Carta de Foral, outorgada por D. Manuel I, a 22 de Dezembro de 1514. Os privilégios concedidos às duas vilas vieram, sobretudo, legitimar práticas consuetudinárias já estabelecidas e, nesse contexto, medieval, reforçar autonomia das povoações. Porém, não será apenas na Carta de Foral que se reflete a ligação, para além da proximidade geográfica ou da dependência administrativa, entre Pernes e Alcanede. A mesma está bem presente na vasta documentação dispersa nas chancelarias régias, nos fundos de ordens religiosas ou, até, nos registos de mercês, onde se descortina uma história das gentes e dos lugares com significativas afinidades.   
Por exemplo, hoje, graças à investigação de Luís de Melo e de João Melo Ataíde, sabemos que Padre António Vieira esteve em Alcanede, onde se recolheu alguns meses e redigiu duas cartas ao diplomata Duarte Ribeiro de Macedo. Terá passado por Pernes? Terá esse repouso de António Vieira em Alcanede, alguma ligação ao estabelecimento dos jesuítas em Pernes? São questões em aberto, merecendo investigação futura.


Notícia Histórica e Topografica da Vila de Alcanede (...) por Simão Froes de Lemos
Manuscrito do Arquivo Histórico Municipal de Santarém

       Avancemos no tempo. Chegados ao século XVIII, logo em 1726, o capitão de infantaria, erudito e genealogista Simão Froes de Lemos (1675-1759) escreveu o célebre manuscrito Notícia Histórica e Topográfica da vila de Alcanede. Bastaria o facto deste “primeiro historiador de Alcanede” ter nascido em Pernes para, novamente, relacionar a duas vilas. Para além disso, o manuscrito versa sobre todos os lugares do então “termo de Alcanede”, focando-se, em vários fólios, na “descrição do lugar de Pernes”. Esta autêntica “crónica da vila de Alcanede” permanece resguardada de um mais vasto olhar público, ansiando a conversão em livro do texto plasmado nos três manuscritos conhecidos. Apesar da generalidade dos estudiosos apenas se referir ao manuscrito que se guarda na Biblioteca Pública de Évora, recentemente “descobriram-se” duas novas cópias, uma delas no fundo Manuscritos da Livraria da Torre do Tombo (ANTT) e a outra à guarda do Arquivo Histórico Municipal de Santarém (AHCMS), em virtude de aquisição do mesmo pela edilidade.
        Convirá não ignorar, como referências fundamentais a Alcanede e a Pernes, nas quais por ora não nos detemos, a multiplicidade de corografias e de dicionários geográficos, a História de Santarém Edificada de Inácio Vasconcelos, os trabalhos de Albertos Pimentel e de Francisco Câncio ou, entre outros, os interessantes artigos do Domingo Ilustrado e do Archivo Pittoresco. Foram as abordagens possíveis desde dos finais do século XVIII até aos alvores de novecentos.
No século XX adentro, entre vários artigos científicos, crónicas e obras literárias, vieram, pela primeira vez, a lume as monografias sobre Alcanede e sobre Pernes. A Monografia de Alcanede teve a veleidade dos começos, resgatando a memória esquecida do manuscrito de Simão Froes de Lemos, foi escrita, em 1936, por Armando da Silva Duarte. O autor, em gesto supremo de humildade, nem fez figurar o seu nome na edição impressa pela Junta de Freguesia. Com maior fôlego, apresentando a única edição fac-similada do Foral Quinhentista, Joaquim do Vale Cruz trouxe-nos, em 1994, uma leitura da “memória do lugar” em: A Vila de Alcanede. Entretanto, em três cuidados volumes, organizada de forma temática e “sentimental” nos dizeres do próprio autor, Mário Rui Silvestre concretizou o “sonho ancestral” da monografia de Pernes, com Pernes – terra antiga do bairro ribatejano. Já nestas primícias do século XXI, João de Melo Ataíde e Luís de Melo publicaram a Nova Monografia de Alcanede, esclarecendo “mistérios” da história da vila e apontando novos caminhos para a investigação.
           Existem muitas outras obras, documentos, artigos, notícias ou opúsculos relacionados com a história e com a memória destas duas vilas, sobre os quais, por economia de espaço, cometemos o pecado da omissão. Contudo, inaugurou-se 7 de Dezembro, pelas 15h30 uma exposição bibliográfica na Sala de Leitura Bernardo Santareno (em Santarém), onde poderá acompanhar toda evolução da história de Alcanede e de Pernes, na escrita que nos sobra do tempo. O evento estará patente até 10 de Janeiro de 2014, rumando posteriormente, em datas a definir a Alcanede e a Pernes.
Essa “escrita do tempo” não se reporta apenas à história, será antes todo o substrato de vida e de memórias através do qual se vai construído a identidade humana, quer das gentes, quer dos lugares, o qual, aqui e ali, vai ficando registado sob a forma de palavras.


© José Raimundo Noras


sexta-feira, 21 de junho de 2013

Que fazer com esta ruína? – achegas para o futuro do Teatro Rosa Damasceno


Para esta breve reflexão, como o leitor mais atento já deve ter adivinhado, usurpámos, em pobre paráfrase, o título da famosa peça de José Saramago. Na peça, Camões não sabe bem o que fazer com o seu livro, essa obra magna da nossa literatura. Na nossa realidade, a cidade de Santarém não sabe bem o que fazer com as ruínas legadas pelo passado, sob a forma de património.

A 19 de Junho último decorreu mais um aniversário sobre a abertura ao público da moderna sala de espectáculos do Teatro Rosa-Damasceno. O projecto de 1938 resultou do traço firma de Amílcar Pinto (1890-1978), arquitecto lisboeta com forte ligação a Santarém.  A nova sala estava mais vocacionada para o cinema, tendo tido excelentes críticas em revistas da especialidade. Na época, a renovação desse teatro foi um sucesso, bem publicitado nas páginas do "Correio da Extremadura" (hoje do Ribatejo) pelos bons auspícios do Clube de Santarém.

Não evocamos aqui essas memórias do Teatro que estendem até ao fim do século XX. Não entramos no coro de lamentos ou na procura de atribuição de culpas pelo abandono do edifício e seu posterior incêndio Nesta crónica queremos antes refletir e provocar a reflexão sobre o futuro do espaço. Que fazer com esta ruína? É o problema que se impõe.

Ainda há dias, por outras palavras, a estudante de arquitectura Joana Rodrigues (a preparar um trabalho sobre o edifício) me fazia exatamente tal pergunta. Será de manter a função de sala de espetáculos numa futura intervenção sobre o espaço? Não tenho dúvidas que sim. Há uns bons anos a esta parte, tenho defendido uma solução integrada para o Teatro Rosa da Damasceno que contemple a preservação da sua função inicial. Não tem sido uma “pregação no deserto”. No entanto, esta minha voz de defesa do teatro moribundo, também ainda não granjeou a atenção de um Sermão de Santo António aos Peixes. Antes de resolvermos o que fazer com esta ruína, estou em crer que a cidade tem de reclamar aquele espaço como seu — isto é independente da gestão pública ou privada do mesmo e das valências que venha a ter.   

Defendo que subsistência do Teatro Rosa Damasceno, enquanto tal, só se justifica se este mantiver a sua função original. Qualquer solução visando a única e exclusiva preservação da fachada, não é digna para o edifício, sendo contrária às modernas doutrinas de salvaguarda do património construído. Contudo, não reivindico que a sala tenha as dimensões da antiga ou, até, que recuperação do espaço se esgote nessas funções culturais. Evidentemente, para viabilização económica do projeto, considero até útil que se possa ponderar a inclusão de valências comercias ou de hotelaria e restauração numa intervenção sobre a ruína.

Será importante perceber que ruína não está só. Para além do edifício contíguo do antigo Banco de Portugal (para o qual, tanto quanto se sabe, a autarquia não tem planos de futuro), existem na encosta vestígios da albergaria de São Martinho e outros de épocas mais recuadas. Estou em crer que qualquer projecto de arquitectura deve completar a integração destas estruturas na solução final. De facto, o aproveitamento do Teatro Rosa Damasceno, com funções de sala de espectáculos, conjugada, por exemplo, com a função de pousada, seria bastante mais fácil de executar se previsse a integração do referido imóvel, conhecido como antigo Banco de Portugal.

Que fazer com esta ruína? Devolvê-la à cidade deve ser a resposta chave. Todos, proprietário, autarquia, grupos culturais e cidadãos interessados deveremos contribuir para a solução. Estou certo, que dessa forma, privilegiando a salutar troca de ideais, em breve, daremos uma cabal resposta à questão. Espero que daqui a poucos anos estejamos a assinalar o aniversário do Teatro Rosa Damasceno não apenas através de uma despretensiosa crónica, mas antes no interior de uma antiga ruína restaurada. 
Postal "Teatro Rosa Damasceno" (anos 40), Ed. Lotty, Coleção "Passaporte"

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Quem tramou o "Cabacinhas"?


No início do século XXI, estou em crer, a Câmara Municipal de Santarém, criou uma mascote para a cidade. Tratou-se de um peluche simpático que resultava de uma composição antropomórfica da Torre da Cabaças, com uns garridos calções e pés farfalhudos, conforme se pode ver na imagem. Chamou-se "Cabacinhas".

Nesse tempo, habitava mais por Coimbra e menos por Santarém, não posso com certeza auferir do sucesso da personagem no burgo e sobretudo no afecto dos scalabitanos. O certo é que me lembro bem da personagem, viva não só nos bonecos, mas também em cartazes e em acessíveis "t-shirts", as quais com alguma sorte ainda se conseguem encontrar à venda nos monumentos da cidade. Levei o Cabacinhas para Coimbra estampado numa dessas camisolas azuis e fiz sucesso na "cidade dos estudantes". 

O boneco era simpático e atraia a curiosidade dos colegas, mais especialmente, das colegas de faculdade. Sem intenção expressa lá fui divulgando Santarém em terras do Mondego e, por vezes, iluminando os conhecimentos de geografia de incautos estudantes de ciências ou de direito, os quais ora julgavam localizar-se Santarém, junto ao mar "lá para Setúbal" ou na cintura industrial do Porto. Há margem da ignorância geográfica desses meus antigos colegas, para além da "t-shirt" acabei por levar o objecto, quem é como que diz o próprio "Cabacinhas" para a "Lusa-Atenas", onde durante algum tempo habitou na povoada estante do meu quarto de caloiro. Nesse ano, entre outras descobertas nas águas por vezes turvas da história, lá iniciei um namorico e o "Cabacinhas" acabou com prenda romântica nas escadas do Jardim da Sereia. Perdi o rastro à moça e, claro, não recuperei o boneco na separação. Entre anos de aturado estudo e vida social da cidade, lembro-me de ter ofertado mais dois "Cabacinhas" em Coimbra, não só a moças namoradeiras como também amigos, para já não falar da "t-shirt" com o boneco estampado.

Já cursava a pós-graduação em História de Arte ou se quiserem primeiro ano do curso de Mestrado e o "Cabacinhas" veio a ter utilidade científica. Utilizei a imagem do boneco, bem como outros símbolos da cidade onde está reproduzindo o "Cabaceiro", para demonstrar como a secular torre do relógio havia assumido uma dimensão identitária em relação à cidade e aos habitantes de Santarém. Mais recentemente, esse meu trabalho, intitulado "A Torre das Cabaças de Santarém e a evolução do conceito de património numa comunidade local" foi, para honra minha, distinguido no VI Encontro Nacional de Estudantes de História (ENEH), em Lisboa. Aí, de novo o simpático "Cabacinhas" serviu para divulgar a cidade onde vivemos e até me foi encomendado por uma colega de história. Contudo, não consegui cumprir o prometido, o "Cabacinhas", pelo menos há um ano, não se encontra à venda em lugar nenhum, que eu saiba.

Ainda esta semana, até porque se aproxima o dia de São Valentim, em conversa com amigos lembrámos do "Cabacinhas". Prenda engraçada não só para as crianças, mas também para a cara-metade. Afinal, houve tempo e dinheiro, de todos nós, investidos na criação do boneco, o qual por experiência própria resultava na divulgação da cidade. Disse, em tal conversa de café, será caso para perguntar "Quem matou o Cabacinhas?". Uma amiga logo me corrigiu, será melhor indagar: "Quem tramou o Cabacinhas?" - porque no fundo o boneco ainda vive na memória de todos nós, para além daqueles que conseguiram guardar um. Por outro lado, o retomar da produção deste boneco até pode vir ser bom negócio em tempos de crise.

Fotografia do "Cabacinhas" de Adriana Lucas

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Santarém e o Futuro (I): 13 ideias para crescer com Santarém!



Afinal, os secretos desejos de alguns, as ânsias perdidas de outros ou talvez os medos periclitantes de muitos não se concretizaram. O mundo continua em 2013. Continua o mundo, assim como continua este nosso pequeno recanto de Portugal a que chamamos Santarém. Neste singelo libelo, ao jeito de crónica, pretendo partilhar convosco 13 ideias para a nossa cidade, as quais considero esteios de uma estratégia de desenvolvimento sustentável.
De facto, este texto vem com um ano de atraso, a sua materialização era para ter sucedido após entrevista ao Correio do Ribatejo em Novembro de 2011, a quando da defesa da minha tese de mestrado. Na altura, já desvendava o véu sobre um breve texto com 12 ideias para Santarém em jeito de programa futuro. Um ano passou as ideias foram maturando, sobre algumas até já se foi discutindo e outras até me surgiram com rol de acontecimentos do próprio ano de 2012.     
Por outro lado, bem entendido, estas ideias não são minhas. Em boa verdade só são nossas as ideias que conseguimos colocar em prática mais ou menos sozinhos nos nossos percursos de vida, estas ideias são da cidade e para cidade. Algumas delas reproduzem anseios antigos de Santarém e da sua região, outras são de índole mais pragmática. A maioria das ideias aqui enunciadas, contudo, assume-se com desafio à cidade e às suas gentes. Saibamos nós criar sinergias, desenvolver esforços e encarar o futuro com um optimismo realista, creio que enquanto comunidade conseguiremos colocar esta dúzia e mais um de projectos em prática e crescer em conjunto com uma cidade melhor.    
         A criação da Universidade do Ribatejo deve será entendida pelos vários parceiros sociais com um objectivo de desenvolvimento da região. Como já o escrevemos, defendemos a criação de uma instituição universitária na nossa região em conjunto com as realidades já existentes, não correndo com elas em termos de “mercado do ensino”, mas complementando-as, com outro tipo de ofertas e até com programas conjuntos. Com sede em Santarém deve a Universidade do Ribatejo se os bons exemplos de estruturas de ensino multipolares e estender a outras cidades do distrito.
         A criação (ou reactivação, porque já existiu) de uma Pousada da Juventude na cidade de Santarém é uma reivindicação justa que deve ser entendida com estímulo à fruição turística da cidade e do concelho. Por outro lado, neste particular é notária a escassez de oferta hoteleira da cidade ao nível da “pousada” ou da “pensão” pelo que os estímulos ao turismo também devem equacionar a reactivação de infra-estruturas hoteleiras no centro da cidade.
       Tendo em conta a distância que separa os centros das cidades de Almeirim, do Cartaxo e de Santarém, inferior a algumas áreas urbanas de outras cidades do país, defendo que devemos esquecer bairrismos e cada vez mais pensar em estratégias de economia de escala. Nesse sentido, creio que seria vantajoso para todas as partes envolvidas, a integração dos transportes urbanos num sistema conjunto a estas três cidades, com mais linhas e um serviço mais próximo dos utentes.       
         Santarém não deve abandonar o desejo do regresso do túmulo do rei D. Fernando I ao Convento de São Francisco. Estando o Convento hoje em dia aberto ao público e já não existindo as ameaças de vandalismo que motivaram a ida do túmulo para Lisboa o seu regresso ao local onde o rei escolheu para ser sepultado deve ser uma vontade que devemos cumprir. Ao mesmo tempo o regresso do túmulo poder ser entendido com oportunidade, que viabilize a criação no próprio Convento de São Francisco de um Museu Nacional da Tumulária, como já foi defendido por figuras diversas na área do património português. 
         Neste momento Santarém é dos poucos locais no mundo onde os monumentos encerram à terça-feira. Defendemos a criação, envolvendo os diversos agentes culturais, de um plano de gestão patrimonial que pressuponha outra dinâmica na gestão do património edificado, garantindo não só a abertura ao público dos monumentos da cidade, como também a sua dinamização sazonal com actividades lúdicas e culturais.
    A actividade tauromáquica deve ser melhor explorada e encarada como oportunidade de desenvolvimento da cidade. Nesse sentido, consideramos que o exíguo espaço museológico do Forcado na praça Monumental Celestino Graça não faz jus às necessidades de promoção da Tauromaquia em Santarém. Assim, defendemos a criação de um Museu Tauromáquico na cidade, em infra-estrutura situada no “campo da feira”, preferencialmente na própria Casa do Campino ou na praça já referida.
         O “Campo da Feira” necessita de um plano urbanístico claro, o qual se centre no que se pretende da ocupação futura do espaço e que responda a determinadas necessidades infra-estruturais da cidade. Para além da criação de um Museu Tauromáquico de abrangência nacional, defendemos que qualquer plano para esta zona deve prever a edificação de uma nova biblioteca pública e arquivo municipal.
          A Casa do Brasil e o consulado honorário do Brasil necessitam de uma gestão mais dinâmica que torne a cidade mais atractiva à comunidade e aos turistas brasileiros em Portugal, bem como promova intercâmbios culturais entre Santarém e o Brasil. Nesse sentido, propomos a criação de uma Fundação Casa do Brasil, onde estejam presentes instituidores representantes da República Federativa do Brasil, a autarquia e outros agentes culturais e empresariais da cidade.
        No contexto actual da promoção turística das cidades é importante contar com novas ferramentas e salvaguardar valores consagrados. Por isso recomendamos o registo das marcas “Santarém: capital do Gótico” e “Santarém: capital nacional da gastronomia”.
          Os dois eventos já existentes na cidade o Festival Nacional de Gastronomia e a Feira Nacional da Agricultura/Feira do Ribatejo para além de já constituírem momentos chave na dinâmica da vida da própria cidade devem voltar a ter uma dimensão internacional, a qual existiu em certas edições. Em ambos, os casos a participação quer de representantes de parceiros da UE ou de países lusófonos deve ser um aspecto a explorar.
        Recuperando antigas tradições culturais da cidade, tais como o FITIJ ou Festival de Cinema Agrícola, defendemos a realização, bienal, de um Festival de Artes de Palco. Este festival, a ser realizado no centro da cidade fazendo uso dos equipamentos culturais existentes, deve envolver os grupos locais e convidados quer nacionais, quer estrangeiros.
         Em alternância com o Festival de Artes de Palco, propomos a criação de um Festival do Fado, aberto a todo o tipo de tendência desse género musical, hoje património da humanidade. De facto, Santarém tem uma relação especial com Fado sendo ponto de encontro do “fado de Lisboa” com a “canção de Coimbra”.   
           Deixámos para o final o desafio maior, a religação da cidade ao rio. De certa forma, o projecto de salvaguarda da cultura Avieira muito tem contribuído neste particular, sendo que louvámos os seus defensores e dinamizadores. No entanto, a cidade precisa de uma estratégia mais consistentes para explorar a sua ligação com o rio, quer de um ponto de vista cultural e social, quer no que respeita à criação de infra-estruturas que permitam um novo diálogo urbano com o Tejo.
          Estamos em crer que com boa vontade e empenho a concretização destas ideias contribuirá para o desenvolvimento sustentável da cidade onde vivemos. Se todos soubermos participar e nos unirmos estamos em crer que todos podemos crescer com Santarém.

© José Raimundo Noras